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Transporte hidroviário volta ao centro da agenda

Críticos divergem sobre impactos socioambientais em projetos de concessões privadas

19 de agosto de 2025

Por Luiz Araújo e Elisa Calmon

Aposta do governo para impulsionar a logística nacional, o transporte hidroviário volta ao centro da agenda de infraestrutura diante da expectativa de que o primeiro projeto de concessão saia do papel após décadas de discussões. Ainda assim, isso deve ocorrer pressionado por dilemas ainda não superados. Enquanto a iniciativa é abraçada pelo poder público como mais barata e limpa, críticos divergem sobre a real sustentabilidade da expansão e sobre os impactos socioambientais de projetos que deverão ser feitos por concessões privadas.

No ano passado, em iniciativa inédita no País, o Ministério de Portos e Aeroportos (MPor) criou a Secretaria Nacional de Hidrovias e Navegação (SNHN). A Pasta lidera estudos para conceder até oito hidrovias à iniciativa privada: Hidrovia do Paraguai (em análise no TCU e com leilão previsto para este ano), Hidrovia do Madeira, Tapajós, Tocantins, Lagoa Mirim, Hidrovia Verde, Parnaíba e São Francisco. Além das concessões, o poder público também atua com obras em trechos como Manaus-Itacoatiara, Guarim-Cotajás e Benjamin Constant.

Hidrovias são vias aquáticas interiores adaptadas para garantir condições de navegação, resultado de intervenções de engenharia que ampliam ou viabilizam seu uso para transporte de passageiros e cargas. Essas adaptações podem incluir dragagem (remoção de sedimentos do fundo do rio), derrocamento (retirada de rochas), mudança no curso de trechos, instalação de sinalização e balizamento, implantação de sistemas de controle operacional, entre outras obras. Por esse conjunto de características, considera-se que o Brasil não tem hidrovias, apenas rios naturalmente navegáveis.

O MPor calcula que o território brasileiro conta com cerca de 41,7 mil quilômetros de vias navegáveis, podendo chegar a 60 mil. Porém, apenas cerca de 20 mil quilômetros são efetivamente utilizados atualmente. Os períodos de estiagem, mais intensos e prolongados a cada ano, impedem a navegação em trechos fundamentais para escoamento da produção agrícola pelos portos da região Norte. Da mesma forma, penalizam a população de Estados como Acre e Amazonas, que dependem dos rios para abastecimento de mercadorias e como meio de transporte para se conectar com o resto do País.

Eficiência logística

A matriz de transporte brasileira é tradicionalmente voltada para o modal rodoviário, respondendo por 68% da carga transportada, conforme estudo divulgado neste ano pela Confederação Nacional do Transporte (CNT). O hidroviário representa apenas 3%, muito abaixo dos 23% observados na China, país com extensão territorial similar.

Para o secretário Nacional de Hidrovias e Navegação, Dino Antunes, há fatores econômicos e políticos que explicam a baixa exploração do modal. Além da prioridade histórica que foi dada à construção de rodovias, havia menor apelo econômico que justificasse a estruturação dos rios. “A expansão da fronteira agrícola viabilizou o uso das hidrovias, como no caso de Miritituba, após a pavimentação da BR-163. Antes disso, não havia produção agrícola suficiente próxima.”

No novo eixo produtivo focado em exportações de commodities agrícolas, os ganhos de eficiência em diferentes etapas ditarão as perspectivas de crescimento da economia nas próximas décadas. O CEO do MoveInfra, Ronei Glanzmann, diz que cada modal tem sua vocação e que o caminhão é eficiente apenas em trechos de até 500 quilômetros. Acima dessa distância, o transporte rodoviário se torna ineficiente. Com a infraestrutura atual, os caminhoneiros percorrem trajetos de até dois mil quilômetros para levar produtos agrícolas ao Porto de Santos.

“O hidroviário é mais barato que o ferroviário e muito mais barato que o rodoviário, porque gasta menos combustível”, avalia Ronei. O MoveInfra reúne os seis principais grupos de infraestrutura do País. Entre as associadas está a Hidrovias do Brasil, que atua com foco no transporte hidroviário. O representante considera que a expansão do transporte por rios não afeta as empresas já atuantes nos demais modais, tampouco os trabalhadores. “O caminhoneiro não perde o emprego. Ele continuará rodando, mas em trechos menores, voltando para casa no mesmo dia.”

As hidrovias diferenciam-se de rios naturalmente navegáveis por oferecerem infraestrutura planejada e mantida para suportar operações regulares. Por causa da estiagem, o volume de carga transportado pelo Rio Paraguai no ano passado foi metade do registrado em 2023. Com a concessão, a expectativa é de possibilitar um aumento de três vezes no volume transportado até 2035.

Para leilão

Os projetos de concessão estão em diferentes estágios de maturidade. No Rio Madeira, que já movimenta mais de 15 milhões de toneladas, há apoio empresarial, mas resistência política, com parte da população temendo a privatização do rio. No Tapajós, a carga está consolidada e a necessidade de intervenções é menor. O Tocantins é mais complexo, envolvendo o Pedral do Lourenço, mas poderá receber modelagem específica. A Lagoa Mirim (RS) depende de dragagem prévia pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), enquanto a Hidrovia Verde (Amazonas-Barra Norte) ainda está em estudo.

As futuras concessionárias serão responsáveis pela arrecadação e oferta dos serviços previstos em contrato. Estão isentas de tarifas as embarcações de passageiros, embarcações mistas (passageiros e cargas) e embarcações de pequeno porte sem atividade econômica regular, como barcos pesqueiros e embarcações recreativas. A remuneração da concessionária é parte custeada por fundos já existentes e por cobranças para grandes embarcações. No caso da Hidrovia do Rio Madeira, a cobrança pela manutenção será feita por tonelada transportada, com tarifa escalonada conforme a entrega das obras, podendo chegar a R$ 0,80 por tonelada.

Para Jorge Bastos, diretor-presidente da Infra S.A., os desafios técnicos e regulatórios foram determinantes na modelagem das hidrovias. Segundo ele, a obtenção de dados de campo e a definição de planos de dragagem para horizontes de 15 a 20 anos se mostraram complexas, diante da variabilidade dos leitos dos rios e da escassez de informações históricas. Além disso, a irregularidade climática e hídrica anual exige planejamento detalhado para garantir a navegabilidade em diferentes cenários. Bastos ressalta que, apesar de utilizar experiências internacionais, o modelo precisou ser construído do zero, adaptado à realidade brasileira.

O diretor da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Alber Vasconcelos, defende que estimular o uso do modal, por exemplo, com recursos do Fundo da Marinha Mercante para aquisição de balsas, é fundamental. “Cada ponto porcentual adicional traz ganhos logísticos, reduz desgaste das rodovias e diminui impacto ambiental. Desenvolver as hidrovias é estratégico, considerando a capacidade de carga, o menor custo e a vantagem ambiental do modal”, afirma Vasconcelos, destacando que países referência em logística têm o transporte por rios como eixo central de eficiência.

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