Economia & Mercados
20/05/2022 18:37

Entrevista/SDU/Trine Flockhart: Guerra Rússia-Ucrânia fará emergir um 'mundo multi-ordem'


Por Ricardo Leopoldo

São Paulo, 20/5/2022 - Com a invasão militar da Rússia na Ucrânia, surgirá uma nova configuração geopolítica global que será um "mundo multi-ordem", formado por vários blocos internacionais, como o que contará com os EUA e Europa, um outro liderado pela China e um menor, que tentará ser formado pela Rússia, além de outros que poderão surgir na América Latina e na África. Esta avaliação foi feita em entrevista exclusiva ao Broadcast por Trine Flockhart, codiretora do Centro de Estudos de Guerra e professora de relações internacionais da Universidade do Sul da Dinamarca (SDU, na sigla em dinamarquês).


Foto: SDU/Divulgação

Para a acadêmica, a China ficará numa posição "em cima do mundo" em relação à ocupação de soldados russos na Ucrânia, pois de um lado quer continuar vendendo seus produtos para todo o planeta, sobretudo para o Ocidente, e ao mesmo tempo não vai deixar de apoiar Vladimir Putin, pois além de aspirar de invadir a Taiwan também está interessada em comprar o petróleo e o gás natural que deixar de ser adquirido pela Europa. Contudo, Trine aponta que o governo de Pequim está ciente de que uma ocupação de Taiwan poderá gerar de forma rápida a Terceira Guerra Mundial com os EUA.

"Pode também ocorrer algum incidente entre as frotas da China e dos EUA no Mar da China Meridional, o que pode se tornar uma crise séria que aumenta e fica fora de controle", destaca.

Na opinião de Trine Flockhart, o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, vai resistir bem, mas aprovará o ingresso da Finlândia e da Suécia na OTAN. Acompanhe os principais trechos da entrevista.

Broadcast: A senhora considera que a invasão da Rússia na Ucrânia foi o fim da ordem internacional baseada em regras. O que virá depois?

Trine Flockhart:
O que virá eu chamo de mundo multi-ordem. Isso é diferente do que era antes da Segunda Guerra Mundial. Nessa nova ordem, haverá grupos de Estados formando diferentes ordens internacionais. Continuará a ordem internacional liberal, com EUA e Europa. Vladimir Putin tem a ambição de formar um grupo liderado pela Rússia que tenha incorporado a Ucrânia, Belarus, Casaquistão e Azerbaijão, basicamente uma tentativa de resgate de uma parte do que era a União Soviética. A China aspira estabelecer a sua ordem com muitos países pelo mundo pela via do desenvolvimento econômico, com a ordem guiada pela iniciativa Belt and Road. Podem surgir outras ordens regionais, como a latino-americana, que pode se colocar ideologicamente em algum lugar entre a ordem liberal e algo mais específico de acordo com as condições da América Latina. Pode ocorrer o mesmo com uma ordem regional africana. Todas elas serão determinadas por valores, que podem ser culturais, políticos, ideológicos ou religiosos.

Broadcast: O diretor-geral da CIA, William Burns, destacou que há sinais de que Xi Jinping não estaria confortável com a prolongada invasão da Rússia na Ucrânia. Quão sólida está a aliança entre ele e Vladimir Putin?

Trine:
Na visita que Putin fez a Xi Jinping no dia 4 de fevereiro, em Pequim, foi anunciado um comunicado que na prática era um manifesto para uma nova ordem mundial. Ambos destacam que o conceito que eles possuem sobre democracia não se parece em nada com a democracia liberal e especificaram que não aceitam a posição de liderança dos EUA do sistema internacional. Não acredito que os chineses estão satisfeitos com esta invasão muito longa, mas ao mesmo tempo, não querem condená-la porque querem manter o acordo com Putin. O governo de Pequim aponta também que Taiwan não é um país e não tem direitos soberanos, porque fazia parte da República Popular da China. A administração de Xi Jinping está em cima do muro. Quer continuar vendendo seus produtos para o mundo, portanto não pode agir de forma deliberada para apoiar Putin, inclusive com armamentos, pois poderia também sofrer duras sanções econômicas. Mas ela quer definitivamente manter as opções em aberto em relação a Taiwan, e provavelmente também está bastante interessada em adquirir gás e petróleo da Rússia quando a Europa parar de comprá-lo. Além disso, há o duro posicionamento em relação à liberdade dos cidadãos em Hong Kong, a posição militar do país no mar da China Meridional e a retórica nacionalista no relacionamento com os EUA.

Broadcast: Como a senhora analisa os objetivos de domínio geopolítico da China e da Rússia?

Trine:
A posição da China é buscar a influência pela integração comercial e econômica, sobretudo com a iniciativa Belt and Road, que é de longo prazo e é bem mais inteligente do que a adotada por Putin, baseada na coerção e poderio militar. Os benefícios econômicos concedidos pela China aos países que se aliarem à iniciativa Belt and Road podem não ter um preço ideológico no momento, mas mais cedo ou mais tarde haverá um preço a pagar por tais nações. E, assim como os europeus descobriram agora quão negativa é a dependência do gás natural da Rússia, aqueles países que se aliaram à China neste projeto estarão em uma relação de dependência. No caso da Rússia, que almeja retomar o império soviético, Belarus, Casaquistão e Azerbaijão estão ao lado de Putin agora pois sabem que se não adotarem tal apoio serão forçados a concedê-lo de alguma forma. Estas duas propostas são completamente diferentes da ordem internacional liberal, que funciona pelo consentimento, onde qualquer país é livre para entrar ou sair e pode fazer parte das suas instituições como convém aos interesses nacionais. A ordem buscada pela Rússia é muito fraca, pois se fundamenta na subjugação. No entanto, a ordem da China tem benefícios econômicos a oferecer, bem como a ordem da Europa, que também ajuda no desenvolvimento de países, inclusive com acordos comerciais, e tem um sistema político atraente.

Broadcast: Qual deve ser o posicionamento mais provável dos EUA e Europa em relação à China com a ocupação militar da Rússia na Ucrânia?

Trine:
A invasão da Rússia na Ucrânia foi um alerta para os EUA e Europa de que é necessário realizar um processo lento de redução das relações econômicas com a China. Os americanos e europeus perceberam que a dependência dos chineses não é positiva com a atuação da Huawei em seus territórios. Não é bom colocar a infraestrutura essencial nas mãos de alguém que pode se tornar seu inimigo. Há também um avanço da consciência ambiental, o que desperta mudanças de comportamento do consumismo, em busca de alternativas sustentáveis de produção de mercadorias.

Broadcast: A senhora considera que os EUA e Europa conseguirão convencer logo Recep Erdogan, presidente da Turquia, a aceitar o ingresso da Finlândia e da Suécia na Otan?

Trine:
Eu acredito que sim, as negociações diplomáticas devem prevalecer e permitir o ingresso destes novos membros da Otan. E isto é um fato enorme. No caso da Suécia, tem uma importância extrema, pois acaba com 200 anos de neutralidade ideológica, que faz parte da identidade do seu povo. Estou conversando com você de uma pequena cidade na Suécia e a 100 metros da minha casa há uma área de proteção civil dos cidadãos, pois o país está totalmente voltado à neutralidade, sem fazer parte de qualquer aliança militar internacional. A posição da Suécia é mais ideológica e é uma opção diferente do que ocorre com a Finlândia, pois é o país na Europa que tem a maior fronteira com a Rússia, com 1.300 quilômetros, e que já foi invadida pela União Soviética. A sua neutralidade acabou sobretudo pela grande necessidade de proteção. O problema de Recep Erdogan é que os países escandinavos não consideram como uma organização terrorista o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), como faz Ancara, e há muitos curdos vivendo na Suécia que não são extraditados para a Turquia, o que deixa Erdogan muito furioso. Haverá um preço para Erdogan aceitar. Eu não sei o que ele almeja de fato, talvez alguma solução para a questão curda.(O PKK é avaliado como uma organização terrorista também pelos EUA e União Europeia)

Broadcast: É possível que Erdogan também queira que a Suécia termine o embargo a armamentos fabricados na Turquia, não?

Trine:
Acredito que, ao final Erdogan, vai conseguir o que realmente quer e vai permitir o ingresso da Suécia e da Finlândia na Otan. Por outro lado, ele não recuou na compra do sistema anti mísseis S-400 da Rússia, o que é estranho, dado que a Turquia é um membro da Otan. Pode ser também conseguir algo em relação aos imigrantes da Síria, dado que seu governo está fazendo um grande favor à Europa para evitar uma imigração em massa para aquele continente.

Broadcast: Depois da bem sucedida reação dos países da Otan para apoiar a Ucrânia na defesa contra a invasão da Rússia, ficaram maiores ou menores os riscos da China realizar uma ocupação militar de Taiwan no curto prazo?

Trine:
A China e os EUA estão cientes de que uma invasão de Taiwan traria sim grandes riscos de deflagrar a Terceira Guerra Mundial. Os EUA iriam à guerra para defender Taiwan, já têm a sétima frota que patrulha o Pacífico Sul e se envolveriam no conflito militar rapidamente. Pode também ocorrer algum incidente entre as frotas da China e dos EUA no Mar da China Meridional, o que pode se tornar uma crise séria que aumenta e fica fora de controle.

Broadcast: O presidente reeleito da França, Emmanuel Macron, e o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, teriam condições de liderar a Europa a partir de agora em vários temas, inclusive para tentar coibir pressões políticas dentro da comunidade europeia de governos de extrema direita, como os da Hungria e Polônia?

Trine:
Eu duvido muito, pois Macron e Scholz não conseguem conter a expansão de movimentos de extrema direita em seus próprios países. Os alemães não querem assumir a liderança da Europa, por questões históricas, embora muitos países no continente gostariam que tal fato ocorresse. Emmanuel Macron quer ser o líder do continente, mas os países europeus não o querem nesta posição. A liderança da Europa pode ocorrer como um retorno ao sistema de arranjos políticos ocorrido nos anos 1800, onde as grandes potências assumiram este papel.

Broadcast: O presidente dos EUA, Joe Biden, destaca como a sua principal bandeira internacional a defesa da democracia contra a ascensão de regimes autoritários, o que chegou a ser apoiado em alguns países pelo seu antecessor. A senhora acredita que a nova ordem liberal vai prosperar contra movimentos intolerantes extremistas que crescem em muitas partes do mundo?

Trine:
Essa é uma questão fundamental para a humanidade. Estou muito pessimista em relação a esta vitória ampla da ordem liberal internacional. Há muitos populistas de extrema direita na Europa e nos EUA, o que inclusive ampliou muito a polarização na política americana. Eu acredito que, por um bom tempo, teremos de conter este problema global, pois não conseguiremos resolvê-lo.

Contato: ricardo.leopoldo@estadao.com
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