Economia & Mercados
28/12/2022 16:58

Especial:De empresa fantasma a dado vazado, fraudes abalam planos de saúde e setor contra-ataca


Por Isabela Moya

São Paulo, 28/12/2022 - Após sofrer com fraudes, a saúde suplementar decidiu criar frentes de combate aos golpes e crimes cometidos por clínicas, médicos, empresas de fachada, corretores e até mesmo pelos próprios beneficiários. Com a sustentabilidade das operadoras já pressionada pela alta sinistralidade dos planos e discussões envolvendo o rol taxativo, o tema é mais um dos problemas que devem seguir afetando o setor no próximo ano.

A Unimed Nacional criou neste ano um programa de combate a fraudes e desperdícios com projetos previstos para o início de 2023, como o uso de reconhecimento facial na solicitação de reembolso feita pelos beneficiários, um processo de automação robótica para checar se as notas fiscais não são falsas ou já foram utilizadas ou canceladas, e um sistema que, por meio de geolocalização do prestador de serviço, verifica se o atendimento foi realizado no mesmo endereço cadastrado.

A FenaSaúde, que representa 14 grupos de operadoras responsáveis por 41% dos planos de saúde médicos e odontológicos do País, também organizou neste ano uma Gerência de Prevenção e Combate às Fraudes que utiliza tecnologias de cruzamento de dados para monitorar ações suspeitas nas bases de dados das operadoras de saúde.

Como resultado do projeto, a federação formalizou ao Ministério Público de São Paulo uma notícia-crime para apurar um esquema fraudulento - envolvendo crimes de pertencimento à organização criminosa, falsidade ideológica e estelionato - com prejuízo estimado em cerca de R$ 40 milhões para operadoras como Amil, Bradesco Saúde, Porto Saúde e SulAmérica. A suspeita é de que empresas de fachadas utilizavam beneficiários laranjas e falsos prestadores de serviços médicos para solicitar reembolsos indevidos.

Rodrigo Fragoso, advogado criminalista com atuação em casos de fraudes econômicas, explica que casos como esse não são isolados. Mais comum do que parece, muitas fraudes não envolvem grandes esquemas articulados para obtenção de lucro sobre as operadoras de saúde, mas se restringem a estratégias para aumento indevido do valor de reembolso de uma consulta ou procedimento, como fracionamento de recibos ou adulteração do procedimento feito ou do valor pago, por exemplo.

Nesse sentido, há relatos de casos de profissionais de saúde ou de clínicas de estética que falsificam laudos de doenças como bruxismo, para propor tratamento com botox - que, na realidade, foi usado exclusivamente para fins estéticos.

Outra situação comum é a omissão da existência de doença pré-existente por parte do beneficiário para diminuição do valor cobrado pelo plano de saúde; ou ainda, o uso de documentos de outro beneficiário para usufruir dos serviços cobertos pelo plano.

Já em patamares maiores, Fragoso relembra casos de multicontratação de apólices por "empresas fantasmas". Geralmente usando dados societários de origem humilde, os criminosos contratam diversos planos de saúde para solicitar reembolsos de consultas falsas para os também falsos funcionários da empresa, recebendo de volta muito mais do que teria sido gasto - quando, na verdade, o valor nem foi desembolsado.

Outro caso é o de clínicas não credenciadas pelas operadoras de saúde que promovem o chamado "reembolso assistido", prática irregular em que há a promoção, inclusive por meio de anúncios em redes sociais, de uma ideia enganosa de atendimento gratuito, sem a necessidade de desembolso prévio por parte do paciente. A fraude funciona com a empresa solicitando dados pessoais - como login e senha - do beneficiário para simular que a consulta já aconteceu e pedir o reembolso, direcionado diretamente para a clínica. Nesses casos, é comum a empresa manipular o valor cobrado pelo mesmo serviço para cada cliente a depender do coeficiente de reembolso do paciente, com o objetivo de receber o maior ressarcimento possível.

Há ainda a chamada fraude dos bancos digitais, em que associações criminosas conseguem acesso a dados cadastrais vazados e entram em contato com a operadora se passando pelo segurado, alterando e-mail, senha e conta bancária cadastrada. De posse dos dados, essas associações criam contas em bancos digitais no nome da vítima para driblar a exigência de que a conta bancária seja do próprio segurado, recebendo assim os reembolsos de consultas que nunca aconteceram.

Pagamento por volume

Por parte dos médicos, pode haver falsificação do estado clínico do paciente e solicitação de exames excessivos. Isso acontece por conta do modelo fee-for-service (pagamento por serviço) adotado pela maioria dos planos de saúde, que remunera o prestador pelo volume de procedimentos realizados. Portanto, quanto maior o volume, mais o prestador recebe da operadora, que administra os recursos coletivos dos beneficiários.

"O pagamento por serviço pode favorecer os desperdícios e o uso excessivo. É importante avançar em projetos de modelos de remuneração baseados em valor, em que o pagamento seja condicionado ao desfecho clínico do paciente, com custos previsíveis e riscos compartilhados", avalia Vera Valente, presidente da FenaSaúde.

Paciente é o último interessado

Existem também situações em que o profissional de saúde direciona o paciente a um prestador com quem ele tem um vínculo - como laboratórios não autorizados pela vigilância sanitária, que cobram valores muito acima da média praticada pelos concorrentes -, porque recebem uma "comissão" pela indicação.

No mesmo sentido, a CPI das Próteses em 2015 escancarou o caso de médicos aliciados por firmas de próteses, órteses e materiais especiais recebendo repasses financeiros para indicar as marcas aos hospitais ou pacientes que realizariam cirurgias. Por isso, os profissionais falsificavam prontuários e boletins médicos e simulavam atos cirúrgicos ou realizavam cirurgias desnecessárias ou sem indicação.

Já por parte dos corretores de planos de saúde, o advogado relata a inclusão de beneficiários que procuram por um plano individual (e pagam por este) em um plano coletivo, que é mais barato, para se apropriar da diferença de valor entre eles. Para isso, falsificam a carteira de trabalho ou guia de FGTS para comprovar um vínculo empregatício fictício. Outra situação ocorre quando os corretores falsificam a idade de pessoas idosas para incluí-las em planos mais baratos, com o mesmo objetivo de tomar posse da diferença.

"O paciente é o último interessado nesses casos", afirma Fragoso. "Não pode haver uma mercantilização da saúde e da medicina, não pode haver conflito de interesse, isso impacta na saúde do paciente", completa.

Desafios e impactos

Para Fragoso, os desafios de combater o problema começam com uma "questão cultural", já que muitos segurados não percebem que estão sendo vítimas de fraude ou cometendo uma. Além disso, há a dificuldade em provar os atos e a percepção das autoridades públicas de que são crimes "de menor importância", explica o advogado. "Parece que o valor é irrisório, mas quando se leva em conta que é uma prática recorrente, é sim penalmente relevante", afirma.

A situação não afeta apenas as operadoras, mas todo o setor de saúde. Para além do impacto financeiro, gera uma desconfiança mútua entre seguradoras de saúde e hospitais, aumentando o número de glosas (recusas de pagamento de procedimentos por parte dos planos de saúde).

Valente pontua os prejuízos das fraudes para os beneficiários, já que os casos ameaçam a saúde e segurança dos pacientes e também elevam os custos de procedimentos devido ao aumento de sinistralidade. Além disso, implicam em aumento de custos por conta de desperdícios e ineficiências, o que demanda investimentos em processos de controle e auditoria.

A FenaSaúde defende que haja um trabalho conjunto com todas as entidades do setor, autoridades e poder público para intensificar a identificação e coibir as ações fraudulentas na saúde, "que, muitas vezes, são encaradas como comuns e rotineiras pela sociedade", diz Valente. Uma estratégia essencial para redução das fraudes em saúde, pública ou privada, na visão da federação, é a implementação de instrumentos mais efetivos para punir e reprimir fraudes, práticas anticomerciais e antiéticas, assim como a introdução de medidas regulatórias para reduzir sobrepreço de materiais especiais e medicamentos, visando assegurar transparência, coibir abusos econômicos nos processos de comercialização e fazer prevalecer as condições de concorrência no setor.

"Para alcançar esses avanços são mandatórias algumas mudanças na legislação do País, como a tipificação específica para os crimes de corrupção privada e de obtenção de vantagem indevida. Também é preciso aumentar o rigor na punição de atos ilícitos praticados por profissionais da saúde ou contra o setor de saúde", afirma a presidente da entidade.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) declarou que regula as operadoras de planos de saúde e suas relações com os beneficiários e prestadores, mas não tem competência para atuar diretamente junto aos prestadores. "Condutas criminosas são apuradas pelos órgãos com competência para tal, como a polícia e o Ministério Público. De forma que, caso a ANS tome ciência de alguma conduta fraudulenta, como, por exemplo, uma fraude documental, o caso é remetido aos órgãos competentes", diz a agência reguladora em nota.

"Nesses casos, e em qualquer um em que o consumidor se sinta lesado por um prestador de serviço de saúde, a ANS orienta que o beneficiário ou seu representante legal denuncie a possível prática criminosa ao conselho profissional pertinente (quando for o caso), ao Ministério Público e à polícia, que são os órgãos com a devida alçada para apuração, investigação e acompanhamento dessas situações", conclui a ANS.

Contato: isabela.moya@estadao.com
Para ver esta notícia sem o delay assine o Broadcast+ e veja todos os conteúdos em tempo real.

Copyright © 2024 - Todos os direitos reservados para o Grupo Estado.

As notícias e cotações deste site possuem delay de 15 minutos.
Termos de uso